domingo, 17 de abril de 2011

#txt1

alta noite já se ia. devem ser o que umas duas ou três da manhã. ao menos era desde a última vez que olhei pro relógio. é um dia de semana, o movimento é baixo, a luz de lâmpadas incandescentes é amena. pela movimentação da moça no balcão daqui uns vinte minutos vai começar a colocar as cadeiras de cabeça para baixo em cima das mesas. finjo que não percebo essa função e vislumbro o reflexo dourado, quase etéreo que o copo de whisky com gelo deixa na madeira polida do balcão. é o que? a quarta ou quinta dose dose e já viajo dessa maneira? não era assim uns dois ou três anos atrás. aliás, devo ser o último da velha turma que ainda faz isso. dou risada discreta sozinho… é engraçado pensar em como as coisas tomaram um rumo assim. embora não tenha porque me ver viajando nisso. ainda prefiro o reflexo hipnótico do copo de whisky, o cheiro meio-amargo do meu próprio cigarro, a voz nostálgica do sinatra, o som vagaroso da orquestra e o máximo do conforto que um banco de bar possa oferecer. não é depressivo como parece. é o paraíso irresponsável que tento prolongar até o limite, como se o sol jamais raiasse, como se o trabalho no escritório jamais existisse e como se o resto das obrigações enfadonhas do cotidiano não estivessem a espera com seus prazos sem prazeres. muda a música e volto para o reflexo do whisky, que por sinal aos poucos começa a ficar mais transparente. melhor tomar pra pedir mais. espero que a moça não negue. e ela não nega, mais uma dose, mais gelo e volta a fazer o que estava fazendo. eu até sei a letra dessa que toca agora. melhor acender outro cigarro. os goles estão ficando maiores, mas me sinto bem ainda, só meus olhos caíram um pouco. pelo visto a moça começou a fazer o caixa. duvido que ela venha puxar assunto dessa vez, nunca fez isso antes, não teria porque agora. em um outro lugar as pessoas que devem vir a interagir no dia seguinte fazem o certo em deixar as suas cabeças nos travesseiros. queria ter essa tranquilidade, queria ser assim, queria essa vida. mas é impossível, ao menos pra mim, pensar em dormir sem tirar ao menos uma hora ou duas do dia pro meu lado egoísta. seja pro cigarro ou pro álcool, seja pra familia, seja pro cachorro seja por que quer que seja, que me faça sentir indivíduo. mudou a música novamente, divaguei de mais, é só o reflexo dourado do copo de whisky em cima do balcão…

sexta-feira, 1 de abril de 2011

A Ditadura brasileira ainda viva – a cidadania torturada

Alexandre Haubrich, jornalista, editor do blog Jornalismo B (http://twitter.com/jornalismob / http://twitter.com/alexhaubrich)


Aos quatro anos de idade, Edson Teles entrou em um prédio na Rua Tutóia, no bairro do Paraíso, em São Paulo para encontrar os pais, que não via há alguns dias. Simpáticos nomes o da rua e o do bairro. Edson ouviu a voz da mãe chamando seu nome, mas, quando se virou, não reconheceu o rosto e o corpo que portavam aquela voz. Em seguida, encontrou o pai, em outra sala, sentado em uma cadeira aparentemente normal para uma criança. Mas havia cintas de couro nos braços da cadeira. Era 1972, e Edson visitava os pais no DOI-CODI, centro da repressão da Ditadura Militar brasileira. “Meu filho perguntou 'por que o pai é verde?' e minha filha perguntou por que eu estava azul”, contou anos atrás a mãe de Edson, Maria Amélia de Almeida Teles.

Na última semana, em um seminário em Porto Alegre, Edson desabafou: “me envergonho de ser brasileiro. Oferecemos o Brasil para ser paraíso dos torturadores. Se torturarem em nome do Estado, aqui são anistiados”. E Edson e sua irmã Janaína não são um caso raro. Muitas crianças viram seus pais serem torturados pelo Estado brasileiro que, entre 1964 e 1985, impôs a seus cidadãos o fim da cidadania e de qualquer possibilidade de dignidade. Socos e pontapés eram carinhos. A violência vinha através de choques elétricos por todo o corpo, afogamentos, fuzilamentos simulados. Homens e mulheres, muitas vezes nus, eram pendurados em paus-de-arara, humilhados de todas as formas, reduzidos a nada. E se Edson e Janaína não são um caso raro, e tampouco a tortura a que foram submetidos seus pais foi um caso raro, também não foi a tortura a única forma pela qual cidadãos brasileiros foram agredidos por seu próprio Estado.

Assassinatos e sequestros também eram comuns. Sim, hoje ainda são. Mas, naqueles anos, quem cometia esses crimes era o Estado, e os cometia como Estado, não apenas através de indivíduos que corrompiam as instituições. O Estado e seus agentes eram os criminosos, os assassinos, sequestradores, torturadores. Brasil nunca mais. Muitos cidadãos brasileiros foram obrigados a fugir do país. Deixaram para trás seu lugar e seus familiares, amigos, colegas. Deixaram para trás toda uma vida para começarem a construir outra longe daqui.

O silêncio, para os militares e civis que referendaram o Golpe de 1964, era a causa pela qual lutavam. Gritos? Permitidos apenas nas salas de tortura, e apenas gritos de dor. Parte significativa da imprensa apoiou a Ditadura de seu início até as portas de seu fim, quando percebeu que, ou abandonava o moribundo, ou morreria junto. A outra parte da imprensa, porém, a parte séria, viu muitos de seus representantes torturados, desaparecidos ou acuados. O fetiche do silêncio.

Derrubada a democracia que se aprofundava no governo João Goulart, os golpistas não queriam mais saber de política, apenas de poder. Um professor falando sobre política em aula poderia ser denunciado por um aluno como terrorista. A mesma coisa em conversas de bar ou de qualquer lugar. O risco de tortura, assassinato ou “desaparecimento” sempre iminente. Se antes a política já era afastada do povo, em 64 o Estado tirou do povo o direito de se aproximar da política.

Com a chamada “abertura democrática” da década de 1980, não acabou-se verdadeiramente com a Ditadura. Até hoje suas sobras contaminam a vida dos brasileiros. A herança da Idade das Trevas tupiniquim está no autoritarismo e na violência policial, na despolitização popular, na agressividade da direita, na ignorância, no conservadorismo moral preconceituoso, racista, machista e homofóbico. Esses resquícios sobrevivem também no imaginário demente de alguns políticos e alguns militares que anseiam pela reinstitucionalização de todos esses absurdos.

Continuam dominando importantes setores do país as pessoas que financiaram e apoiaram de diversas formas a Ditadura Militar. Grandes empresários, destacados políticos, graduados militares. Os donos da comunicação brasileira também entram nesse bolo. É por tudo isso que, enquanto nossos países vizinhos agem para limpar a sujeira deixada por suas respectivas ditaduras – sem varrer essa sujeira para baixo do tapete –, aqui o silêncio segue imposto.

É para punir os responsáveis pelo massacre da cidadania brasileira que é necessário revisar a Lei da Anistia, assinada em 1979, que, ao mesmo tempo em que beneficiou quem lutava por um Estado democrático, absolveu automaticamente as pessoas que, em nome do Estado brasileiro, cometeram todos os tipos de crime. A tortura e o assassinato em nome do Estado foram permitidos, o que configura uma arbitrariedade e um desrespeito aos brasileiros representados por esse Estado. Os cidadãos que lutaram contra a Ditadura Militar já foram fortemente punidos das mais diversas formas ainda durante aquele período. Os representantes dessa Ditadura, não. Além disso, a Lei da Anistia foi aprovada pelos opositores ao regime com uma arma na cabeça. Da mesma forma que obtinham confissões através da tortura, os governantes de então impuseram sua própria imunidade como condição para deixarem o povo brasileiro ser re-empoderado minimamente.

A abertura imediata de todos os arquivos da Ditadura Militar e a ampla divulgação de seu conteúdo, assim como o trabalho de resgate histórico do que vivemos, é outra obrigação do Estado brasileiro. Os cidadãos têm o direito de conhecer sua própria história, a história de seu país. Se o Estado é uma instituição da sociedade, e esta é formada pelo conjunto dos indivíduos, o Estado somos nós, e nós temos o direito de conhecer a verdade e o dever de lutar por esse direito. Para que não corramos o risco de retornar àquela situação de terror precisamos saber detalhadamente o que nos levou a ela o que a manteve por tanto tempo. Só assim, com a punição dos gerentes da nossa Idade das Trevas e com o direito à verdade, poderemos realmente encarar de frente as heranças daquele tempo que ainda nos assombram.